segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Mikhail Bakhtin: o filósofo do diálogo

Ao analisar o discurso na arte e na vida, o russo revolucionou a teoria linguística no século 20

Tatiana Pinheiro (novaescola@atleitor.com.br)

MIKHAIL BAKHTIN

Mikhail Bakhtin dedicou a vida à definição de noções, conceitos e categorias de análise da linguagem com base em discursos cotidianos, artísticos, filosóficos, científicos e institucionais. Em sua trajetória, notável pelo volume de textos, ensaios e livros redigidos, esse filósofo russo não esteve sozinho. Foi um dos mais destacados pensadores de uma rede de profissionais preocupados com as formas de estudar linguagem, literatura e arte, que incluía o linguista Valentin Voloshinov (1895-1936) e o teórico literário Pavel Medvedev (1891-1938).

Um dos aspectos mais inovadores da produção do Círculo de Bakhtin, como ficou conhecido o grupo, foi enxergar a linguagem como um constante processo de interação mediado pelo diálogo - e não apenas como um sistema autônomo. "A língua materna, seu vocabulário e sua estrutura gramatical, não conhecemos por meio de dicionários ou manuais de gramática, mas graças aos enunciados concretos que ouvimos e reproduzimos na comunicação efetiva com as pessoas que nos rodeiam", escreveu o filósofo.

Segundo essa concepção, a língua só existe em função do uso que locutores (quem fala ou escreve) e interlocutores (quem lê ou escuta) fazem dela em situações (prosaicas ou formais) de comunicação. O ensinar, o aprender e o empregar a linguagem passam necessariamente pelo sujeito, o agente das relações sociais e o responsável pela composição e pelo estilo dos discursos. Esse sujeito se vale do conhecimento de enunciados anteriores para formular suas falas e redigir seus textos. Além disso, um enunciado sempre é modulado pelo falante para o contexto social, histórico, cultural e ideológico. "Caso contrário, ele não será compreendido", explica a linguista Beth Brait, estudiosa de Bakhtin e professora associada da Universidade de São Paulo (USP) e da Pontifícia Universidade Católica (PUC), ambas na capital paulista.

Nessa relação dialógica entre locutor e interlocutor no meio social, em que o verbal e o não-verbal influenciam de maneira determinante a construção dos enunciados, outro dado ganhou contornos de tese: a interação por meio da linguagem se dá num contexto em que todos participam em condição de igualdade. Aquele que enuncia seleciona palavras apropriadas para formular uma mensagem compreensível para seus destinatários. Por outro lado, o interlocutor interpreta e responde com postura ativa àquele enunciado, internamente (por meio de seus pensamentos) ou externamente (por meio de um novo enunciado oral ou escrito).

Cada esfera de produção exige uma escolha de palavras

A reflexão bakhtiniana sobre a linguagem e suas infinitas possibilidades privilegiou o romance como objeto de estudo, especialmente a prosa do autor russo Fiodor Dostoiévski (1821-1881). De acordo com Irene Machado, doutora em Letras pela USP e mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC, isso não se deve ao fato de esse ser o gênero de maior expressão na cultura letrada. "O romance só interessou a Bakhtin porque este viu nele a representação da voz na figura dos homens que falam, discutem ideias e procuram posicionar-se no mundo", explica ela em Bakhtin Conceitos-Chave, livro organizado por Beth Brait.

O exame dos discursos no romance possibilitou ao pensador percorrer também os caminhos da análise das práticas de linguagem no dia a dia. Nesse ir e vir entre discursos artísticos e cotidianos, Bakhtin instaurou uma linha de pensamento alternativa à retórica e à poética delineadas por Aristóteles (384-322 a.C.) e consagradas até então nas análises de gêneros literários (leia mais sobre outras inf luências em sua obra no quadro abaixo).

Uma das distinções que ele se permite fazer é a classificação dos gêneros quanto às esferas de uso da linguagem. Os discursivos primários são espontâneos e se dão no âmbito da comunicação cotidiana, que pode ocorrer na praça, na feira ou no ambiente de trabalho. Já os secundários são produzidos com base em códigos culturais elaborados, como a escrita (em romances, reportagens, ensaios etc.).

Para cada esfera de produção, circulação e recepção de discursos, existem gêneros apropriados. Todo discurso requer uma escolha diferente de palavras, que determina o estilo da mensagem. "Não há receita pronta. Se o aluno não ler muita poesia, dificilmente será capaz de escrever uma respeitando as marcas do gênero", exemplifica Brait.

Ao considerar a importância do sujeito, das esferas de comunicação e dos contextos históricos, sociais, culturais e ideológicos no uso efetivo da linguagem, Bakhtin e o Círculo engendraram uma abertura conceitual que permite, hoje, analisar as formações discursivas dos meios de comunicação de massa e das modernas mídias digitais. Suas teorias, fundamentadas no diálogo, a forma mais elementar de comunicação, mantêm a atualidade graças à incrível capacidade de se relacionar com o passado, o presente e o futuro.

Fonte: Nova Escola

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